Graziella Guiotti
O dia de ontem foi especialmente vergonhoso para quem acompanha os debates públicos dos Legislativos Federal e do estado de São Paulo. Na Alesp, um deputado chamou, na tribuna, parlamentares e servidores de “vagabundos” e convidou para o confronto físico os demais representantes presentes na Casa, que resultou em mais um episódio de cenas que já seriam lamentáveis num estádio de futebol, quiçá numa Assembleia Legislativa. Na Câmara dos Deputados, um fotógrafo captou o momento em que uma parlamentar trocava mensagens instantâneas e questionava se “Chamar de Pepa é quebra de decoro?”, enquanto outra parlamentar usava termos como “burra” e “prostituta”. A questão do decoro está intimamente relacionada com o a cultura e funcionamento da Casa, que merece mais atenção e debate público.
Grosso modo, cultura são valores e práticas compartilhadas entre os atores de um determinado grupo. Um importante conjunto de obras contribui para o debate da cultura política sob a perspectiva da sociologia e antropologia no Brasil entre os anos de 1998 e 2010. A Coleção Antropologia da Política é composta de 30 de temas tão diversos como pode ser a política, abarcando desde processos eleitorais em comunidades camponesas até órgãos de cúpula de instância federal. Destaco dois trabalhos sobre o Congresso Nacional que foram resultados de etnografias.
Etnografia, especialidade dos antropólogos, é uma metodologia que se usa para tentar entender comunidades, eventos e grupos de forma profunda, ainda que sem pretensões generalizadoras. Via de regra, um pesquisador ao fazer seu desenho de pesquisa se depara com uma escolha: quanto mais consegue se aprofundar nas minúcias do seu objeto de pesquisa, menos ele consegue generalizar seus resultados para outros casos. É o que chamamos de validade interna e externa. Assim, quando analisamos profundamente o parlamento de um país em um momento, podemos fazer uma descrição altamente acurada, mas essa descrição sozinha pode não ajudar a descrever parlamentos de outros países ou mesmo esse mesmo parlamento em outros momentos. Por outro lado, podemos analisar uma regra específica em diversos parlamentos em diferentes épocas que nos ajude a prever os resultados dessa instituições em outros momentos. Ambos os tipos de trabalhos são necessários para se compreender fenômenos e para que as ciências sociais possam cumprir seu papel de informar a sociedade e reduzir as incertezas.
Dois trabalhos da coleção que citei são especialmente interessantes para compreender o funcionamento e os valores que permeavam os comportamentos dos parlamentares na década de 1990, quando as pesquisas foram realizadas. O primeiro resultou no livro Em Nome das “Bases”, de Marcos Bezerra, que teve como enfoque a relação entre os políticos “nacionais” e “locais” no processo de elaboração e execução do orçamento federal. O autor observa a dificuldade em se distinguir relações públicas e pessoais, bem como as práticas que seriam consideradas legítimas ou corruptas. Depois, a obra A Honra da Política, de Carla Teixeira, procura entender o lugar normativo do conceito de decoro parlamentar. A pesquisa deu origem ainda ao artigo Honra moderna e política em Max Weber, onde a autora analisa os casos de perda de mandato por quebra de decoro parlamentar de 1949 a 1994.
A tipificação jurídica da quebra de decoro está presente tanto na Constituição quanto nos regimentos do Senado, Câmara e Comum. Pode resultar em penas que vão de advertência verbal a perda do mandato. O conceito é particularmente interessante para entender o conjunto valorativo que rege o comportamento dos parlamentares em âmbito federal. Isto é, ao estabelecer o que seria considerado impróprio para o comportamento de um Deputado, os parlamentares também estabelecem uma prescrição do tipo de comportamento que é esperado e entendido como digno de “honra” e “dignidade”. O conceito de “honra”, portanto, seria um guarda-chuvas que abarca todo um conjunto de valores hierarquizados e contextualizados, isto é, entendidos como razoáveis naquele lugar e naquele momento.
A conclusão de Teixeira (1999) é que as especificidades do que definiria o “decoro parlamentar” teriam necessariamente ser entendidas dentro do contexto de grupo e época. O resultado de um julgamento de quebra de decoro parlamentar funcionaria como um termômetro para chegar mais perto de entender a hierarquização de valores que guiam o comportamento de um determinado parlamento num determinado momento. A honra seria, portanto, o critério central que define o juízo de valor da conduta política.
A subjetividade do critério do decoro foi conferida aos parlamentares pelo legislador por entender que estes são parte de um Poder independente e não deve sofrer interferências inoportunas de outros. É preciso atentar ainda para nefasta possibilidade do uso da regra branca para perseguição política e os riscos democráticos desse cenário. Por outro lado, cabe observar que a não manifestação dos parlamentos após ações altamente questionáveis de parlamentares estabelece que tais atitudes são aceitáveis e não configuram quebra de decoro. Os parlamentares e partidos precisam sentir o peso do que estão normalizando e é papel da sociedade cobrar e fiscalizar.
Palavras-chave: Movimento Voto Consciente; Poder Executivo; Poder Legislativo; Alesp; Congresso Nacional.
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