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Em direção à normalidade democrática?

Luciana Santana e Joyce Martins



O governo republicano defendido pelos federalistas estadunidenses em 1787, e que influenciou diversas Constituições latino-americanas, tinha como preocupação central evitar a anarquia e a tirania e, para isso, estipulou meios de o poder controlar o próprio poder. A ideia do sistema de freios e contrapesos se encontra, em seu caráter prático, na divisão entre Executivo, Legislativo e Judiciário e em sua independência e vínculo parciais para que cada um pudesse resistir aos ataques dos outros.

As Constituições que seguem o modelo da federalista (caso da brasileira) prescreveram instrumentos institucionais para os mútuos controles: o veto presidencial; a possibilidade de o Legislativo resistir ao Executivo, insistindo com suas iniciativas; a reação da Justiça que deve atuar desde o controle de constitucionalidade até o julgamento de crimes cometidos pelo Presidente da República.

Esse legado, que buscou proteger as minorias e impedir que estas tivessem de “se curvar às maiorias”, foi atacado nos últimos anos no Brasil, colocando em perigo não apenas a harmonia entre os poderes (a liberdade de ação e autonomia de cada um), como também os direitos construídos e legitimados a partir da Nova República. Sem freios, qualquer poder é capaz de aproximar-se da tirania. Nesse sentido, o Judiciário acabou atuando como um “freio de mão” na tentativa de conter os abusos do Executivo diante do Congresso, muitas vezes, inerte.

Ao longo dos últimos anos, em diversas situações, o STF foi provocado a tomar decisões para arrefecer possíveis crises. Na pandemia, por exemplo, o Judiciário foi ator institucional muito importante para reforçar e esclarecer a respeito do papel da União, dos estados e dos municípios no enfrentamento da situação, bem como para preservar os direitos parlamentares das minorias ao garantir a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado Federal. Isso vale também para outras instâncias da Justiça, como a eleitoral, que continuou conduzindo dentro dos marcos legais a eleição de 2022, mesmo após reiterados ataques.

A reação ao atentado às sedes dos três poderes e à soberania popular (visto que cabe a esta a decisão de escolha do chefe do Executivo), junto à eleição de novo governo Federal, têm colaborado para restabelecer o relacionamento institucional e harmônico entre os três poderes, o que não se via nos últimos anos.

Ainda que haja posicionamentos ideológicos distintos entre os seus componentes, o momento tornou óbvia a necessidade não apenas dos freios e contrapesos, mas também de aliança entre os poderes para que suas funções e atribuições sejam mantidas, possibilitando a sobrevivência da própria democracia liberal. Logicamente, esse entendimento apenas é possível quando temos líderes democráticos.

Desde a redemocratização, em nenhum momento podemos falar em rompimentos institucionais no país, mas os abalos na relação entre os poderes durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro nos permite ter evidências sobre a atual retomada da normalidade democrática na relação entre os poderes.

Para além das ações contra as consequências do oito de janeiro, outros fatores pragmáticos guiaram a retomada da sintonia entre os agentes do poder: a inelegibilidade de Bolsonaro e a redução da força de seus aliados de extrema-direita; a capacidade de negociação do chefe do Executivo junto às lideranças partidárias no Legislativo; a aprovação pelo Senado da indicação de Cristiano Zanin para o STF; a aprovação do arcabouço fiscal ou da reforma tributária pela Câmara dos deputados (e muito provavelmente será aprovada no Senado Federal), dentre outros.

As oposições continuam tendo espaço para externalizar suas posições, participando de todas as instâncias de deliberação e decisão política no âmbito do Legislativo. Não à toa, temos algumas comissões parlamentares de inquérito em pleno funcionamento, tais como a CPI do MST ou a CPMI dos atos antidemocráticos. Ou ainda a apresentação de pedido de impeachment de ministros do STF, como o que foi protocolado no dia de ontem por um grupo de deputados e senadores contra o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso.

Obviamente, as respostas aos ataques do Judiciário e às decisões tomadas por seus membros podem ser consideradas impopulares ou não esperadas por parte da população, mas nada disso legitima qualquer ato antidemocrático ou agressões, como a ocorrida contra o ministro Alexandre de Moraes e sua família no último dia 16 de julho, em aeroporto de Roma.

Aqui, temos um problema que parece ser mais complexo. Os rescaldos da polarização e radicalização política no país reforçam o que já sabíamos antes mesmo desses episódios grotescos de intolerância: precisamos de um país mais educado politicamente, que compreenda conceitos basilares de um estado democrático de direitos. E a partir desse prisma, a normalidade democrática plena não é apenas institucional: passa por um pacto de civilidade com a sociedade brasileira.

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