Vítor Sandes – Professor Adjunto de Ciência Política (UFPI)
Raul Bonfim – Doutorando em Ciência Política (UNICAMP)
O orçamento é o coração das políticas públicas. Sem ele, o Estado simplesmente não alcança os cidadãos. Vamos dar um exemplo prático. No auge da pandemia de Covid-19, quando o Sistema Único de Saúde (SUS) e, particularmente, os hospitais públicos foram muito demandados, devido à grande quantidade de pessoas internadas, os recursos foram viabilizados, em grande parte, por meio do “Orçamento de Guerra”, após a aprovação da Emenda Constitucional nº 106/2020.
O orçamento não é uma mera formalidade. É por meio dele que se prevê os gastos que serão feitos com base na previsão de receitas para o ano seguinte. Por isso, deve-se aprovar o orçamento anual no ano anterior, ainda que nem sempre isso ocorra. No caso do Governo Federal, o orçamento anual é proposto pelo Poder Executivo e alterado e aprovado pelo Legislativo. O orçamento, ou melhor, a Lei Orçamentária Anual (LOA) é elaborada e aprovada, conforme a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que define as prioridades para o ano seguinte. Além disso, o orçamento deve possibilitar o cumprimento dos objetivos e das metas previstas no Plano Plurianual (PPA), apresentado e aprovado no primeiro ano do governo, com vigência por quatro anos.
O orçamento viabiliza a implementação de políticas públicas fundamentais para os cidadãos brasileiros. Por isso, deve ser entendido como um instrumento para se alcançar metas traçadas para o país, levando-se em consideração as demandas e necessidades da população. Assim sendo, os gastos realizados a partir da LOA, e nos termos da LDO e do PPA, devem ter uma finalidade republicana e, consequentemente, devem ser transparentes. Não cabe saber somente se os recursos foram gastos, mas para qual função (saúde, educação, por exemplo), ação e localidades eles foram destinados.
E é por isso que o chamado “orçamento secreto” tem causado tanta controvérsia. O chamado “orçamento secreto”, na verdade, é uma parte do orçamento da união destinado a um tipo específico de emenda: a emenda de relator-geral à LOA, que foram introduzidas no ordenamento orçamentário em 2020. Vale frisar que as emendas orçamentárias estão previstas na Constituição Federal e são regulamentadas pela resolução nº 1 de 2006 do Congresso Nacional. Em geral, elas podem ser de dois tipos: individuais (deputados e senadores) e coletivas (bancadas e estaduais e comissões permanentes do Congresso Nacional). Para essas emendas, é possível rastrear os recursos: quem destinou e para qual localidade será destinada. No caso das emendas de relator isso não é possível.
As emendas de relator não são nenhuma novidade no orçamento federal. Entretanto, antes de 2020 sua função se resumia em corrigir erros e omissões presentes na proposta de orçamento original encaminhada pelo Executivo, garantindo uma maior adequação às demandas da sociedade. Com as mudanças introduzidas recentemente, o relator passa a ter a prerrogativa não apenas de introduzir novas despesas no orçamento, mas também de influenciar as prioridades da proposta. Para 2020, o montante empenhado em emendas de relator foi de R$ 19,7 bilhões. Para 2021, até o mês de outubro, esses valores estavam em R$ 9,3 bilhões. Além disso, como já apontado por alguns veículos de comunicação, as emendas de relator têm sido utilizadas para beneficiar um grupo restrito de parlamentares, sem que seja possível identificar os autores das indicações feitas.
E por isso que elas são “secretas”. Sem o detalhamento dessas emendas, os cidadãos e as instituições de controle não conseguem acompanhar e cobrar a sua execução. Não por acaso o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a sua execução por entender que falta transparência na sua distribuição e, consequentemente, execução, o que atenta frontalmente a Constituição Federal brasileira.
Como uma forma de ilustrar a falta de transparência do “orçamento secreto”, os dados disponibilizados pelos portais de transparência do governo federal não têm nos permitido identificar para quais localidades eles estão sendo destinados. Uma simples consulta no Siga Brasil (plataforma do Senado Federal) é suficiente para perceber que se tornou impossível identificar os estados e municípios beneficiados com esses recursos. Nos dados consultados, referentes aos recursos empenhados até outubro de 2021, 100% do montante financeiro referente ao “orçamento secreto” aparece carimbado como “Região” e de caráter “Nacional”, inviabilizando o rastreio do recurso.
Assim, ainda que a participação do legislativo no processo orçamentário seja legítima e, consequentemente, fortaleça os pilares da democracia, a falta de transparência sobre como e onde esses recursos são aplicados lançam uma nuvem tempestiva sobre os nossos mecanismos de accountability. Isso se torna mais grave em um contexto de aumento da desigualdade social e queda dos investimentos públicos no país. Em 2010, os investimentos totais empenhados pelo governo ficaram na casa de R$ 101 bi (atualizados pelo IPCA de novembro de 2021). Para 2020 esses recursos foram reduzidos para R$ 51 bi.
Se a desigualdade social e a pobreza no país têm aumentado, num contexto de péssimo desempenho econômico, altas taxas de desemprego e de inflação, caberia ao Executivo e ao Legislativo fazerem bom uso dos recursos públicos. Em nome da eficiência e tendo em vista os problemas gravíssimos que o país tem enfrentado, não deveria haver qualquer margem para o uso inadequado e pouco transparente de recursos públicos.
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