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PEC Kamikaze: a arapuca está armada

Bruno Silva e Raphael Torrezan



Nas últimas semanas o Congresso Nacional está em destaque nos meios de comunicação. O motivo já é conhecido por muitos: a aprovação da PEC apelidada de “Kamizake”, a qual ampliou na cifra dos bilhões de reais os gastos governamentais em diversas áreas sensíveis do ponto de vista social há pouco mais de dois meses das eleições nacionais de 2022. Detalhe importante, com o apoio maciço do Senado e da Câmara dos Deputados contando com votação favorável de partidos de todas as cores e matizes ideológicos. E agora, José? O que realmente está em jogo do ponto de vista econômico e político com essa aventura eleitoreira do presidente com endosso do Legislativo? É importante relembrar alguns fatos e apontar para os desafios gerados com a aprovação dessa PEC.



Nos últimos 25 anos toda a estrutura macroeconômica brasileira esteve amparada no chamado tripé macroeconômico. A lógica por trás desse sistema está alicerçada na adoção de três elementos muito claros e objetivos: (i) câmbio flutuante; (ii) metas de inflação; (iii) geração de superávit primário. Em linhas gerais, cada perna deste tripé é responsável por indicar a saúde econômica do país: se o câmbio está valorizado, é sinal de que o país está com grandes reservas; se a inflação está próxima a sua meta, denota estabilidade da economia; a geração de superávit, aponta que as receitas são maiores que os gastos, havendo recursos em caixa para honrar seus credores.



Para os observadores mais astutos é facilmente perceptível que as duas primeiras pernas deste arranjo institucional já se deterioraram. A desvalorização da moeda brasileira nos últimos meses, com o dólar atingindo patamares inéditos e influenciando na desconfiança internacional que paira sobre o Brasil é uma amostra nítida disso. Não é novidade também que a inflação tem corroído a renda das famílias ao ponto do churrasco tornar-se um artigo de luxo, a gasolina se aproximar a R$ 10,00/litro em alguns estados e, o gás de cozinha, ser substituído por álcool ou lenha pelos cidadãos de baixa renda.



No entanto, a disciplina fiscal parecia estar ilesa a grandes aventuras de políticos com apetites mais vorazes. Isso decorre de sua importância no atual contexto macroeconômico, sendo através da geração de superávit primário (em linhas gerais, gastar menos do que se arrecada) que o Brasil vinha demonstrando internacionalmente seriedade com as contas públicas. A importância da disciplina fiscal é tamanha que praticamente toda a segunda metade da década de 1990 até os dias atuais foi dedicada a isso. Em um rápido resumo é possível desatacar: a busca para sanar descompassos financeiros em nível subnacional através de renegociação das dívidas dos estados e municípios; promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal que tornou a disciplina fiscal um dos maiores temores dos chefes dos Poderes em âmbito federal, estadual e municipal; fortalecimento dos órgãos de controle externo como os Tribunal de Contas Estaduais e; em 2016, a aprovação do teto dos gastos, a qual vislumbrava extremo controle sobre as contas públicas.



Neste cenário, o papel do Congresso Nacional sempre foi importante para a promoção de disciplina fiscal. Como ao longo das décadas a execução orçamentária esteve mais nas mãos do Executivo do que do Legislativo, o Congresso concentrou-se em fiscalizar se a execução ocorria de maneira adequada e sem comprometer a estabilidade macroeconômica, ao invés de avalizar gastos sem procedência. No entanto, perante a forte incerteza eleitoral deste ano para o atual governo, somada à crise econômica nacional no âmbito da covid-19 e o oportunismo de parlamentares que miram apenas no primeiro domingo de outubro reelegerem-se, as medidas aprovadas pela PEC Kamikaze irão colaborar para agravar a crise econômica que nos encontramos.



A narrativa adotada pelo governo e seus apoiadores para justificar as recentes medidas econômicas aprovadas têm atingido de maneira irresponsável as bases de toda a federação do ponto de vista fiscal. É o caso da associação do aumento contínuo do preço dos combustíveis ao ICMS cobrado pelos estados, mera desculpa política. O ICMS permaneceu praticamente inalterado na última década, sendo que o aumento do preço do combustível está relacionado, de fato, ao câmbio desvalorizado somado ao aumento internacional do preço do barril de petróleo. Como solução para o problema o Executivo junto ao Congresso optou por criar a PEC do Combustível, cujo objetivo foi diminuir a alíquota do ICMS cobrada sobre o combustível. Os parlamentares fingiram se esquecer que 20% da arrecadação deste imposto dos estados encontra-se atrelada a esse produto, o que certamente irá gerar uma perda para os entes subnacionais: cerca de 80 bilhões de reais. Mas a aventura não para por aí, não.



A lógica de “furar o teto” encontra respaldo dos que defendem a necessidade de aumento do poder de compra das famílias brasileiras a todo custo diante da inflação em dois dígitos. Mais uma vez, o Congresso parece inclinado a aprovar esse projeto e criar uma bomba fiscal para o exercício de 2023. Em nome do curto prazo diante do caos econômico, parlamentares aproveitam para avançar sobre o orçamento como se este fosse ilimitado. Se o orçamento secreto vinha sendo a galinha dos ovos de ouro de muitos governistas, agora estampar a foto de campanha como um dos pais/mães do Auxílio Brasil turbinado e dos vales que foram aprovados a taxistas, caminhoneiros e motoristas de aplicativo pode se tornar a nova imagem da campanha eleitoral. A maioria embarcou na onda eleitoreira do governo Bolsonaro e abandonou o seu papel fiscalizador.



O que gera mais estranheza é que soluções críveis para a economia não são debatidas há certo tempo pelo Poder que fora contratado pelos eleitores justamente para desenhar soluções inéditas. Por exemplo, se o verdadeiro problema é tributário (como hora ou outra políticos alegam), por que os parlamentares não se debruçaram ao longo dos últimos anos sobre as três propostas de reforma tributária que estão em tramitação na Câmara? A PEC 45/2019 encontra-se parada no plenário e pouco é discutida, sendo que a partir dela poderiam ser resolvidas diversas assimetrias sem comprometer o resultado primário nacional.



Se politicamente não for considerado o que é necessário ser planejado e executado para, de fato, haver saída para a crise, o roteiro do desastre já está dado: as receitas diminuirão, as despesas aumentarão e a corrosão fiscal atingirá os três níveis federativos. Na década de 1990, Fernando Henrique Cardoso junto ao Congresso comemoravam que “o pobre passou a comer frango e iogurte”, como símbolo do sucesso advindo com o plano Real e as medidas econômicas adotadas e sequenciadas por outros governos. Agora, décadas depois, os pobres comem pele de frango e nem sequer se lembram do gosto do iogurte. Ou podem até se lembrar ao consumir por tempo determinado com as supostas bondades governamentais que tem data de vencimento curta, bem curta, diga-se de passagem.

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